O que será de nós?
Recentemente a Netflix lançou o documentário “O Dilema das Redes”, nos impactando de maneira significativa sobre o poder das redes sociais. Ao expor comentários de ex-funcionários e CEO’s de grandes empresas de tecnologia, a obra debate sobre como as empresas lucram bilhões de dólares captando a atenção de seus usuários, por meio de métodos capazes de influenciar nossa mentes de maneira silenciosa.
Os avanços tecnológicos e a expansão da internet, em meados de 1990 a 2000, viabilizaram o surgimento das redes sociais. Inicialmente com o intuito de conectar pessoas ao redor do mundo, as redes sociais se tornaram uma ferramenta simples de comunicação, permitindo que as pessoas se expressassem, através de uma simples caixa de texto, com a seguinte pergunta: “No que você está pensando?”.
Assim nasceram as redes sociais, seus ganhos foram grandiosos, otimizaram a comunicação e se tornaram uma fonte infinita de entretenimento, disseminando notícias, reencontros, promovendo relacionamentos à distância e até salvando vidas em alguns casos.
Como tudo que é novo há benefícios e malefícios, não seria diferente com as redes sociais, seus males enraizados são muitos, desde os mais leves até os mais perigosos e ameaçadores, seja prejudicando, viciando e afetando sua maneira de agir fora do ambiente virtual.
Diariamente centenas de pessoas navegam por seus feeds que estão repletos de novidades, memes, elementos que despertam sua curiosidade. Nesse processo o corpo libera dopamina em excesso, você fica animado, ansioso, “esquece os problemas” , entra em um estado de hipnose, se desligando totalmente do mundo ao seu redor.
Ao usar o celular, você esquece do mundo ao seu redor, está em estado hipnótico, o momento perfeito para que este “medicamento” seja eficiente para você.
Medicamento? Segundo Nir Eyal o autor do livro Hooked: How to build Habit-Forming Products, as redes sociais a princípio agem como uma espécie de vitamina, ou seja uma suplementação, algo que você usa para ter pequenos ganhos diários. Com o uso frequente das redes, seu cérebro entra em um estado de carência de dopamina, inicialmente como uma vitamina, acaba se tornando um medicamento, usado para suprir a necessidade, suprir “a dor” que talvez nem exista e agora você está viciado em acabar com ela.
“A dopamina é a substância do prazer, e todo mundo quer essa sensação no cérebro” - Fábio Aurélio Leite¹
O usuário ao interagir com o meio digital tenta atender necessidades de dois tipos: interpessoal e pessoal. A primeira refere-se ao anseio de integrar-se a grupos sociais. Ao publicar certo tipo de conteúdo, independente de um meme, uma notícia ou uma foto pessoal, espera-se dos usuários um feedback com a publicação que foi postada, mediante os recursos de interação.
Já a segunda está vinculada a necessidade de minar a “dor” que o indivíduo sente: ansiedade, solidão, tédio, desprezo e outras angústias pessoais. As sensações da “vida real” não necessariamente condizem com as notificações recebidas nos aplicativos.
Um nítido exemplo disso se dá em relação às patentes emocionais criados pelo Facebook, que não necessariamente estão relacionados ao sentimento do usuário que reagiu ao ver sua publicação, “um amei” nem sempre significa que a pessoa amou, sendo simplesmente feedback sobre sua postagem.
Esses aplicativos lutam diariamente por atenção, a fim de despertar sua curiosidade para você investir tempo e até dinheiro em produtos que são mostrados em propagandas constantemente no feed. As empresas agem vendendo mercadorias que você não precisava e nem desejava, a fim de que se torne o produto ideal para eles.
Mecanismos que coletam e vendem seus dados aos milhares de anunciantes, que direcionam a publicidade ideal a você, o induzindo a compra de produtos diversos.
Ao longo do documentário, o cientista da computação e fundador da realidade virtual Jaron Lanier, resume essa ideia: “a única maneira deles ganharem dinheiro é modificar o que você faz, como pensa e quem você é”.
No livro o método chamado HOOKED (em português “gancho”) consiste em 4 etapas que agem diretamente no subconsciente, abalando o lado emocional do indivíduo, criando desta forma o engajamento ideal.
A primeira etapa é chamada de
Gatilho
Ferramentas:
- Uma notificação;
- Um lembrete;
- Um som.
Objetivo:
- Chamar sua atenção;
- É o que lhe impulsiona a tomar uma ação (a faísca inicial);
- Solução ao tédio, medo e ambição.
Os gatilhos são separados em dois tipos:
Interno
- Notificação associado a um sentimento;
- Emocional, atinge o sistema límbico;
- Uma menção em um comentário, marcação em uma foto.
Externo
- Uma simples notificação sem nenhuma associação;
- Visual, atinge o lado instintivo;
- Não atinge o emocional, apenas atrai sua atenção;
- O símbolo de notificação não lida, em aplicativos, está associado ao gatilho externo.
Estas duas formas de gatilhos podem ser usadas ao mesmo tempo ou podem ser convertidas. Essa conversão se dá ao receber uma notificação que apenas chama sua atenção (por um toque e/ou um popup na tela) se tratando de um um gatilho externo. No momento da visualização, a mensagem pode se transformar em um gatilho interno, caso a mesma o atinja em nível emocional (menção em uma publicação, mensagem, curtida de alguém especial, entre outros).
Se o comentário ou marcação em uma foto for algo positivo, nosso ego é fortalecido, nos motivando a postar mais, investir (continuando o ciclo). Por outro lado se o comentário for negativo, nosso ego diminui, podendo desenvolver um sentimento depressivo e de não pertencimento ao ciclo social, mesmo assim ainda existe a motivação para postar conteúdo, pois você já foi fisgado.
Ao conseguir chamar sua atenção, você é convidado a executar uma
Ação
- Ação para obter algo;
- Comportamento que antecipa a recompensa;
- Para que o usuário execute esta ação, ela deve ser fácil e sem muito esforço mental.
O próximo passo é a
Recompensa Variável
Assim que você realiza algo, sua recompensa virá de modo inusitado. O mesmo acontece nas redes sociais ao promover um engajamento via compartilhamento, comentário e likes, no qual o usuário é cativado por recompensas mutáveis.
- Uma recompensa normal libera dopamina e quando ela é do tipo variável liberado ainda mais;
- Desperta a curiosidade;
- Recompensa nunca é a mesma, recompensas normais enjoam;
- Quando postamos uma foto no Instagram por exemplo, o produto dessa ação é uma recompensa variável, pois não sabemos quantos likes terá, quantos comentários e como serão esses, positivos ou negativos.
E ao final fechando esse ciclo, temos o
Investimento
- Investir tempo, trabalho e dinheiro para que o ciclo continue.
- Ao preencher um perfil com suas informações, colocar sua foto, você investiu tempo e vai querer voltar ali para dar continuidade em seus interesses, para não ‘perder’ seu tempo ‘investido’.
- Em campanhas eleitorais, os candidatos tendem a enriquecer suas páginas a fim de alavancar melhores alcances entre os eleitores. As melhores estratégias estão no investimento de: informações sobre propostas, currículo e afinidades. Não necessariamente geram um retorno, mas são realizadas a fim de.
Retomando os conceitos, a dinâmica de engajamento passa por quatro etapas. Na primeira, o ciclo se inicia com o gatilho externo ou interno (notificação, alerta, um lembrete algo que chame sua atenção). Aqueles que atiçam sua curiosidade, mas não envolvem nenhum sentimento, são considerados gatilhos externos. Dependendo do grau de comoção que esta notificação o afetará, temos determinado gatilho.
Com o gatilho implementado somos atiçados a realizar uma ação, para assim obter a recompensa diferente a cada envolvimento, que nos instiga a permanecer no ciclo, investindo cada vez mais. Dessa maneira, podemos entender que cada etapa é pensada com o intuito de nos envolver emocionalmente, viciar e manipular a forma como enxergamos a realidade.
Porém esse processo é muito mais complexo do que imaginamos. Segundo os relatos de ex-funcionários do Facebook, Youtube, Pinterest, Google, Apple, Twitter entre outras corporações de mídia mais famosas do mundo, o feed dessas plataformas são construídos de modo a despertar em nós um desejo de mudança. Na busca disso tentamos ser alguém que não somos, usando recursos digitais como filtros, edições para fortalecer o ego e nos adequar aos padrões de beleza midiáticos.
Somos atraídos por algoritmos e induzidos a clicar em um entretenimento calculado exatamente para nós, através da Inteligência Artificial, que coleta dados de todos os usuários cadastrados nas plataformas, criando assim uma espécie de ficha cadastral.
Por mais assustador que seja esse modelo viciante e problemático de negócio, acaba sendo utilizado por você e milhares de pessoas, criando assim um imenso banco de dados com informações precisas sobre todo o mundo, podendo ser usado para analisar e cultivar os bons hábitos ao redor do mundo ou controlar e manipular a população. Seus dados estão “na mão” de grandes empresas de comunicação e elas que irão decidir qual caminho seguir.
Somos capazes de nos livrar desse parasita (redes sociais)?
Ainda que a internet e as novas tecnologias tragam grandes avanços ao mundo, otimizando e criando conteúdo, beneficiando a medicina, a ciência e todos os processos humanos. Não podemos desconsiderar o fato de que seu uso e inteligência cada vez maior, nos coloca em uma posição de dependência das máquinas.
Chegará tempos em que as máquinas não dependerão mais dos homem, mas os homens dependerão delas.
Como humanos temos o dever de nos atentar ao presente e às ações diárias que não somente nos influenciam, mas impactam o futuro do mundo.
“O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente.” - Mahatma Gandhi
No documentário é aconselhável desativar as notificações no celular, principalmente de redes sociais deixando apenas as que forem importantes para você, tomando assim o controle e estabelecendo um limite de uso das mesmas.
É necessário limitar o uso das redes sociais e procurar “fugir do tédio” de outras maneiras, para que possamos reduzir o consumo desenfreado de publicidade oriunda da venda de informações pessoais. Além disso, devemos nos conscientizarmos sobre o risco da obsolescência programada, assim caminharemos para um consumo inteligente e a preservação do meio ambiente.
Escrevi este texto com o intuito de refletir sobre esse cenário catastrófico que estamos inseridos. Estou indiretamente contribuindo para o ciclo das redes ao vincular este texto em um produto midiático, deste modo, ele acaba sendo ambíguo pois uso a plataforma na qual crítico para transmitir minha ideia.
Contudo o próprio meio acaba se torna um objeto de manifesto, pelo compartilhamento deste texto em uma rede social, atingindo o máximo de pessoas possíveis, com o intuito de espalhar o conhecimento dessa situação pelo mundo.
Ao desenvolver uma solução devemos nos questionar: “Até que ponto uma solução deixa de ser uma solução e passa a ser um problema?”
Portanto, para que a mudança seja possível as empresas responsáveis pelas redes sociais precisam agir preocupando-se imediatamente com a saúde de seus usuários, adotando o chamado Design Ético ou moral. Como estudante de design julgo de extrema importância a aplicação do Design Ético, além de propor um produto que siga todos os parâmetros de UX (User Experience) e UI (User Interface), facilitando assim a vida do usuário e dispondo de uma boa usabilidade.
Em contrapartida ao propor um caminho não basta somente entender o que o usuário necessita, mas também prever as consequências que esse novo produto trará na vida do usuário ao curto e longo prazo e em escala global. A aplicação do Design Ético resultará em um produto que preza pela saúde do usuário, sem mecanismos e métodos fortes de engajamento emocional utilizados atualmente.
Enquanto a conscientização das empresas e dos designers responsáveis por essas aplicações não ocorrerem, nosso papel como usuário é de remediar essas consequências, tomar medidas pessoais, zelando pela saúde de todos.
¹ Fábio Aurélio Leite é psiquiatra do Hospital Santa Lúcia e membro da Sociedade Brasileira de Psiquiatria.
Edital:
Idealizador: Renan B. S. Lameu;
Autor: Renan B. S. Lameu;
Revisão: Gabriel Gomes Santana.
As imagens usadas são de autoria de Renan Bsl, as demais imagens estão creditadas ao longo do texto.
Bibliografia:
EYAL, Nir. Hooked: How to Build Habit-Forming Products.
LUCAS, Thiago. Healthy design: o design ético acida de qualquer outro. UX Collective. Disponível em: <“https://brasil.uxdesign.cc/healthy-design-o-design-%C3%A9tico-acima-de-qualquer-outro-4dd02b707d7f”>. Acesso em: 07/10/2020
MARTINEZ, Marta. O que é obsolescência programada?. eCycle. Disponível em:<“https://www.ecycle.com.br/1721-obsolescencia-programada.html”>. Acesso em: 02/10/2020
RUDNITZKI,Ethel; OLIVEIRA, Rafael. Como o Facebook está patenteando as suas emoções. Publica. 2019. Disponível em: <“https://apublica.org/2019/07/como-o-facebook-esta-patenteando-as-suas-emocoes/”> Acesso em: 03/10/2020.
WE ARE SOCIAL, Hootsuite. 2020. Disponível em: <“https://wearesocial.com/digital-2020”> Acesso em: 06/11/2020.